terça-feira, abril 05, 2011

Literatura Francesa

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Bovarismo: o imaginário e a realidade

A personagem mais famosa de Flaubert, Emma Bovary, criava sonhos e imagens românticas, inspirada em seus livros, para preencher o vazio de uma vida repleta de aspirações e insatisfações.

Patrícia Gaier Martins

Madame Bovary é um clássico e ninguém discute. Mas a questão é: por que este livro se tornou um clássico? Primeiramente, é preciso definir o que é um clássico para, depois, verificar as razões por que a obra se classifica como tal.

Ítalo Calvino, em seu ensaio Por que ler os clássicos (1981), define, em quatorze corolários, o que é um clássico. Assim, podemos resumir: um livro clássico é aquele que nos convida à leitura de tanto ouvirmos falar nele, ou a uma releitura, que não deixa de ser uma leitura de descoberta, tão inédita quanto a primeira. Madame Bovary, certamente, por ser citado tantas vezes e por ter produzido uma série de críticas e comentários sobre a moral dos personagens, nos chama a uma leitura e, também, a possíveis releituras.

Para Calvino, um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer. Desta forma, é preciso sempre projetar uma nova luz sobre a obra que estamos relendo, para que se revelem aspectos despercebidos durante as leituras anteriores. Flaubert, neste magnífico romance, revela, em descrições minuciosas, os estados psíquicos e espirituais de Emma. A esses detalhes, devemos estar atentos, pois são eles que tornam a releitura quase inédita e nos dizem o que ainda não tinham dito.

Um livro que comenta ou critica outro nunca tem mais a dizer do que o livro em questão. É por isso que Calvino recomenda a leitura direta dos textos originais, evitando o mais possível crítica bibliográfica, comentários e interpretações. Ainda diz em seu oitavo corolário: um clássico é uma obra que provoca incessantemente uma nuvem de discursos críticos sobre si, mas continuamente as repele para longe.

O romance flauberiano não só rendeu crítica, como também um processo. Em 1857, o Ministério Público de Paris, na figura do advogado Ernest Pinard, acusou Gustave Flaubert, seguido da defesa conduzida por M. Sénard, por ofensa à moral e à religião explícita em Madame Bovary. O livro foi acusado por um crime de linguagem e, antes de sua edição, o júri decidiu absolver o autor mediante a supressão de alguns trechos da obra.

Madame Bovary foi publicado e, como todos os clássicos, foi colocado à prova do tempo. Depois do julgamento, houve muito interesse na leitura da obra, o que resultou em novos comentários e constatações a respeito de Emma Bovary, personagem a quem mais deram atenção pelo seu adultério e frieza para com Charles Bovary, seu marido. Tanto sobreviveu, que após um século e meio, o livro ainda é lido e relido. E, a cada leitura, novos aspectos importantes são analisados.

Emma Bovary, personagem que dá título à obra, é uma das personagens femininas mais complexas dos romances literários. Antes do casamento, se chamava Emma Rouault, filha do senhor Rouault. Morava no campo e cuidava de seu pai. Quando era mais nova, aprendeu a ler romances no convento; tinha grande gosto pelos livros e pela música. Aquele universo romântico, de aventuras amorosas que apareciam nos livros de Emma, fez com que sonhasse em um dia casar, mudar para a cidade, frequentar os teatros, os grandes bailes, vestir belos vestidos, enfim, ter tudo o que não tinha ali, em Bertaux. Charles aparece na vida de Emma e logo se casam. Em pouco tempo, com a convivência, a fantasia se desmancha. A Sra. Bovary começa a ter repulsa por seu marido, que era plano, calmo e sem graça. A história toda mostra o conflito em que a personagem vive: por um lado, a fantasia, o sonho, o imaginário do que ela poderia ser se não estivesse casada com aquele pobre homem; de outro, a realidade, o casamento, a criança Berta e as dívidas.

A partir desse paralelo entre realidade e o mundo imaginário de Emma, surge o termo bovarismo, cunhado, em 1892, por Jules de Gaultier a partir do romance de Gustave Flaubert. Mais tarde, a psicologia apropriou-se deste termo para referir-se a certos tipos de atitude neurótica em que o indivíduo, desprovido de autocrítica, imagina-se diferente do que ele é, idealizando a sua personalidade, especialmente no campo sentimental. Emma Bovary mede a sua vida pelos parâmetros provenientes da sua experiência de leitora. O bovarismo consiste, assim, numa insatisfação com a realidade e demonstra a incapacidade de assumir uma posição crítica em relação à ficção.

Gaultier, em seu livro Le bovarysme, la psychologie dans l’oeuvre de Flaubert (O bovarismo, a psicologia na obra de Flaubert), de 1892, explica: Emma personificou essa doença original da alma humana, para a qual seu nome pode servir de rótulo, se entendermos por ‘bovarismo’ a faculdade que faz o ser humano conceber a si mesmo de outro modo que não aquele que é na verdade. Essa capacidade remete não a uma fraqueza de caráter, mas a um funcionamento psicológico, típico da espécie humana.

Emma foi educada em um colégio de freiras frequentado por meninas da alta sociedade, onde aos 13 anos ela foi submetida à influência de uma menina mais velha, que lhe deu alguns livros: aquilo tudo não passava de amores, amantes, mulheres perseguidas e desmaiando em locais solitários, bosques sombrios, males de amor, juras, soluços, lágrimas e beijos, homens fortes como leões, suaves como cordeiros, virtuosos como nunca se é, sempre bem vestidos e que choram como bebês. O efeito teria sido imediato: ela teria passado a sonhar em viver em algum velho palacete, como as castelãs de longos corpetes, que sob o trevo das arcadas passam os dias com o cotovelo na pedra da janela e o queixo apoiado na mão, olhando ao fundo da paisagem, para ver se do campo chega algum cavaleiro com uma pluma branca no chapéu, galopando um corcel negro. Essa atraente fantasia sentimental, em uma idade precoce, marcaria seu desenvolvimento e se intensificaria com o passar do tempo.

A intensidade imaginativa constitui a face produtiva do bovarismo – a protagonista aspira a algo, tenta escapar de sua condição. No momento em que a heroína do romance conhece Charles, seu marido, ainda está sob influência da nostalgia do colégio de freiras e dos sonhos e histórias com anjinhos de asas douradas, madonas, lagos e gondoleiros. Acredita ter encontrado o amor, mas, rapidamente, se decepciona. Pouco depois do casamento, ela é tomada por um inefável mal-estar, que muda de aspecto como as nuvens e turbilhona como o vento.Nesse momento, a protagonista já vive em um mundo paralelo à morna realidade que a cerca. E esses devaneios se tornarão exacerbados quando ela tiver ocasião de participar de um baile da alta sociedade. De volta para a casa do campo, ela comprou um mapa de Paris, e com a ponta do dedo deslizando sobre ele, fazia compras na capital.

A cada desilusão, Emma é tomada de uma estranha doença nervosa. E para se curar, ela se volta para o marido, busca leituras mais sérias e, por fim, abraça a religião. Mas sempre tem recaídas e choraminga pelo veludo que não tem, pela felicidade que lhe falta, pelos sonhos impossíveis, pela casa pequena demais. Mesmo se aventurando nos amores que sonhava, ela se decepciona com seus amantes, pois não a satisfazem completamente. Então, tem uma última tentativa de fazer de Charles um homem melhor, mas a cirurgia de Hipólito é um fracasso e o arruína ainda mais.

Na verdade, Emma é uma desocupada. A Sra. Bovary, mãe de Charles, já havia aconselhado ele a proibir a mulher de ler seus livros. Ela teria notado que estes distraíam a nora dos afazeres e cuidados da casa. Mas ele não a ouviu. Digo desocupada no sentido de que Emma sentia-se entediada, dando vazão a esses devaneios: seu coração ficou vazio mais uma vez, e então recomeçava a mesma sequência de dias. E eles se seguiriam assim, um depois do outro, sempre iguais, incontáveis, e não trazendo nada! O futuro era um corredor escuro, no fim do qual havia uma porta bem fechada. Também, outra característica atribuída a ela poderia ser a estupidez, pois não se dá conta do absurdo de seus desejos, não faz nada de efetivo para melhorar seu casamento e não tem o menor interesse pelas preocupações alheias. Ela simplesmente não tem os recursos que lhe permitiriam compreender o mundo que a cerca e analisar seus limites. Mas Flaubert consegue poupá-la, mostrando outros personagens tão estúpidos quanto ela, se não mais, por exemplo, o político que faz um ruidoso discurso em uma reunião agrícola, ou o farmacêutico Homais, que despeja uma coleção de ideias feitas sobre todos os assuntos possíveis. Mas esses não interessam tanto, já que somente ela foi levada em consideração no tribunal.

Por fim, esta incrível protagonista terá alucinações, não por arrependimento, mas por causa de suas dívidas adquiridas quando os romances já não a satisfaziam. Ela envenena-se e morre, agonizando. É importante destacar que, nesta hora, é Charles quem fica ao seu lado até a sua morte.

Para mim, clássico é aquele livro que mexe de alguma forma com o mundo real, que provoca discussões e pensamentos sobre a temática da obra, mesmo ultrapassando os limites do tempo. Calvino diz: é clássico aquilo que persiste como rumor mesmo onde predomina a atualidade mais incompatível.

Após a leitura e análise da obra, compreendo a razão por que é importante ler este clássico: ler Madame Bovary é melhor do que não ler Madame Bovary.


Referências Bibliográficas

CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

FLAUBERT, Gustave. Madame Bovary. São Paulo: Abril, 1971.

GAULTIER, Jules de. Le Bovarysme. La psychologie dans l’oeuvre de Flaubert, 1892.

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