terça-feira, junho 14, 2011

Blackout = Blecaute, segundo Raul Carrion

O estrangeirismo na formação do léxico

Patrícia Gaier Martins

O projeto de lei do deputado estadual Raul Carrion contra estrangeirismos tem causado polêmica no Rio Grande do Sul – e não é para menos. A Assembléia gaúcha aprovou, por 26 a 24 votos, um projeto que proíbe o uso de palavras estrangeiras – inglesas, melhor dizendo – em documentos oficiais, propagandas e na mídia sem o acompanhamento de uma tradução, quando houver equivalente em língua portuguesa.

A intenção do deputado é bem clara: preservar a língua portuguesa no Brasil, para que a identidade da língua nacional deixe de ser influenciada pela “gringa” – posição bem comum, considerando que é um conservador, para não dizer comunista. A mesma medida foi tomada, alguns anos atrás, pelo deputado Aldo Rebelo, também do PCdoB. O governador Tarso Genro (PT), antes de vetar o projeto, antecipou que iria apresentar uma nova proposta de “valorização da língua portuguesa”.

Diante disso, podemos levantar a seguinte questão: qual a concepção de língua do deputado Carrion para argumentar tal lei? Em uma entrevista ao site – quero dizer, sítio – Terra, ele argumenta que o português apresenta mais de 400 mil palavras em seu léxico e que usar as estrangeiras no lugar das portuguesas é pura ignorância, coisa de papagaio, diz ele. Ainda nos mostra o exemplo das palavras “light” e “diet”, as quais brasileiros encontram dificuldade em saber qual o significado de cada uma. Todavia, Raul se contradiz dizendo que “blecaute” é uma palavra que veio do estrangeiro – blackout –, mas, sendo aportuguesada, pode ser usada sem risco nenhum, ou seja, importa mesmo é a forma como escrever a palavra e não o que significa, porque que diferença tem blecaute e blackout se o cidadão não sabe o significado de nenhuma? Há de se concordar que o deputado tem uma concepção de língua muito limitada, logo não caberia a ele discutir uma lei tão rigorosa e delicada ao mesmo tempo.

Um estudioso da língua, ou melhor, um linguista, resolveria esse impasse rapidamente. A primeira coisa a se dizer é que uma língua nunca é pura. O contato constante entre línguas é próprio da história das línguas. Assim, ela não é estática, pois, se está em uso, comprova que é língua viva e sofre constantes processos. O mesmo não se pode falar de uma língua morta, que não está sendo usada e serve somente para estudo – o latim clássico é um exemplo. Nas próprias gramáticas da língua portuguesa, estão registrados os processos de formação das palavras e, entre eles, há um específico que trata do estrangeirismo, provando que é inevitável a adoção de palavras que vêm de fora no português.

Para o defensor ferrenho da língua nacional, a primeira questão a que ele deveria se voltar é a história da formação do léxico brasileiro, já que, em entrevista ao Terra, afirma ser um grande entendedor de história. A começar pelo século XVI, na própria colonização do Brasil, em que se verifica uma mistura da língua indígena, a tupi, com o português, de Portugal. Sem tardar, o Brasil tratou de elaborar dicionários introduzindo os brasileirismos, fruto do contato dessas duas línguas. Até hoje, temos inúmeros exemplos, principalmente nomes de animais e plantas.

O próprio português vem do latim. Se, agora, tivéssemos que retirar todas as palavras formais usadas em um tribunal, por exemplo, o que faríamos com habeas corpus, que, no latim, significa “tenha seu corpo”? Acredito que o deputado Raul Carrion, ao elaborar e pensar sobre esse projeto, se preocupou muito mais com casos específicos do estrangeirismo, e não com o todo. Ele argumenta bastante em relação às expressões do dia-a-dia como happy hour, download, blackout – expressões, estas, que só têm sentido na cultura norte americana e que perdem o significado primeiro se traduzidas - e a diferença entre light e diet, as quais não são usadas (creio eu) em documentos e enunciados formais, a não ser a especificação de açúcar e nutrientes em produtos alimentares. No cotidiano, é bem natural que usemos palavras estrangeiras por economia – imagine dizer “baixar arquivo da página virtual” ao invés de download da internet ou, ainda, “hora feliz após o trabalho” em troca de happy hour –, até porque, existem expressões que não há como traduzi-las “ao pé da letra”, é preciso usar, às vezes, duas ou três palavras para expressar apenas uma. Da mesma forma que a língua incorpora novas palavras, também faz cortes no vocabulário por não serem necessárias.

Para finalizar, cito a opinião de Fernando Veríssimo, registrada por Claudio Leal, do Terra: “A única maneira de defender a língua portuguesa dos estrangeirismos é confiar que as pessoas, eventualmente, se dêem conta do ridículo.” Assim, é sempre bom saber como e quando usar o estrangeirismo, para não passar por ignorante.