quarta-feira, agosto 17, 2011

Timtim por timtim - Fernando Veríssimo

Durante alguns anos, o tintim me intrigou. Tintim por tintim: o que queria dizer aquilo? Imaginei que fosse alguma misteriosa medida de outros tempos que sobrevivera ao sistema métrico, como a braça, a légua, etc. Outro mistério era o triz. Qual a exata definição de um triz? É uma subdivisão de tempo ou de espaço. As coisas deixam de acontecer por um triz, por uma fração de segundo ou de milímetro. Mas que fração? O triz talvez correspondesse a meio tintim, ou o tintim a um décimo de triz. Tanto o tintim quanto o triz pertenceriam ao obscuro mundo das microcoisas. Há quem diga que não existe uma fração mínima de matéria, que tudo pode ser dividido e subdividido. Assim como existe o infinito para fora - isto e, o espaço sem fim, depois que o Universo acaba - existiria o infinito para dentro. A menor fração da menor partícula do último átomo ainda seria formada por dois trizes, e cada triz por dois tintins, e cada tintim por dois trizes, e assim por diante, até a loucura.
Descobri, finalmente, o que significa tintim. É verdade que, se tivesse me dado o trabalho de olhar no dicionário mais cedo, minha ignorância não teria durado tanto. Mas o óbvio, às vezes, e a última coisa que nos ocorre. Está no Aurelião. Tintim, vocábulo onomatopaico que evoca o tinido das moedas. Originalmente, portanto, "tintim por tintim" indicava um pagamento feito minuciosamente, moeda por moeda. Isso no tempo em que as moedas, no Brasil, tiniam, ao contrário de hoje, quando são feitas de papelão e se chocam sem ruído. Numa investigação feita hoje da corrupção no país tintim por tintim ficaríamos tinindo sem parar e chegaríamos a uma nova concepção de infinito.
Tintim por tintim. A menina muito dada namoraria sim-sim por sim-sim. O gordo incontrolável progrediria pela vida quindim por quindim. O telespectador habitual viveria plim-plim por plim-plim. E você e eu vamos ganhando nosso salário tin por tin (olha aí, a inflação já levou dois rins). Resolvido o mistério do tintim, que não é uma subdivisão nem de tempo nem de espaço nem de matéria, resta o triz. O Aurelião não nos ajuda. "Triz", diz ele, significa por pouco. Sim, mas que pouco? Queremos algarismos, vírgulas, zeros, definições para "triz". Substantivo feminino. Popular. "Icterícia." Triz quer dizer icterícia. Ou teremos que mudar todas as nossas teorias sobre o Universo ou teremos que mudar de assunto. Acho melhor mudar de assunto. O Universo já tem problemas demais.

VERÍSSIMO,
Luís Fernando. Comédias para se ler na escola. Editora Obetiva.

terça-feira, julho 05, 2011

Compartilhando arquivos...

Viajando pela internet, achei uma ferramenta muito útil, para mim que tenho muita dificuldade em carregar arquivos aqui no blog!
Trata-se de uma espécie de "caixa" de arquivos pessoais... se alguém gostar, fica a dica!
Eu fiz a minha "box". Para acessar, entre em www.boxify.me/patygaier ! Lá, eu tenho algumas obras postadas e, cada vez que postar uma nova, aviso aqui no blog!


Literatura sul-rio-grandense

  Um breve comentário sobre um dos Quatro negros: Janéti

Patrícia Gaier Martins*

Neste texto, me proponho a tecer alguns comentários a respeito da novela Quatro negros, de Luis Augusto Fischer, publicada em 2005, dando ênfase à Janéti, a principal personagem da obra. Primeiramente, se faz importante apresentar um resumo da narrativa, para, depois, analisar o ponto a que me propus.
A obra trata-se de narrativa ficcional, em que o narrador conta, inspirado em pessoas que conhece e, portanto, reais, a história de quatro negros que têm experiências de vida em comum: se não por serem unidos pelo sangue ou pela cor, é por pertencerem ao mesmo espaço e condição social. Assim, o livro divide-se em cinco capítulos, em que os quatro primeiros mostram, nessa sequência, Janéti, Seu Sinhô, Jorge (Airton) e Rosi.
A narrativa se faz em linguagem coloquial, como se fosse uma conversa entre narrador e um suposto interlocutor. Comum em narrativas contemporâneas, o narrador é testemunha, não sendo onipresente ou onisciente, mas sim tendo uma visão limitada, em que narra a partir de sua subtração como narrador.
Fischer, ou melhor, o narrador, nos apresenta Janéti nas primeiras páginas do livro; menina, filha de pais negros e pobres, que mora na metade sul e interiorana do Rio Grande do Sul, reúne todos os seus irmãos, que já haviam sido adotados por outras famílias, para embarcar, junto com seus pais, em uma vida nova rumo à cidade grande.
            Na sequência, também conhecemos o negro Seu Sinhô, cujo apelido foi dado pelo seu avô, justamente por ser um questionador e, como diz o narrador, meio filósofo. E é com esse personagem que o narrador teve um tempo significativo de convivência, pois o velho passara alguns dias em sua casa, em Porto Alegre. Nesses dias, eles compartilham a sua cultura um com o outro: enquanto o narrador aprende que aricungo é o mesmo que berimbau, Seu Sinhô aprende que o fogão a gás não é como a chapa lá da sua casa: o a gás tem um fogo frio, fogo controlado, fogo da cidade, fogo meio sem caráter (FISCHER, 2005, p.59).
            A Janéti e o Seu Sinhô não têm relação nenhuma senão pela cor e pelo lugar de origem. Na verdade, eles nem se conheceram. Podemos dizer, então, que Fischer, na verdade, não só quer contar a história de quatro negros gaúchos, mas fazer uma relação com um fato histórico que é bastante tecido dentro da literatura gaúcha. Isso, porque a literatura sul-rio-grandense, desde o começo, sempre elege, por vias históricas, um dos dois fatos ocorridos no RS: ou a Revolução Farroupilha ou o processo imigratório. Neste caso, Fischer optou pelo último, uma vez que o primeiro tem como produção uma literatura mitificada, do monarca das coxilhas e, este outro, o gaúcho que encontra falta de oportunidades e pobreza na cidade grande. Mesmo assim, a pequena e improdutiva propriedade, aliada à falta de formação intelectual, são motivos suficientes para a família migrar do campo à cidade, levando a esperança e o amor incondicional na bagagem.
            Ainda em síntese da obra, temos os dois irmãos da Janéti nos capítulos três e quatro, respectivamente. O primeiro é o irmão mais velho, Airton, que Janéti, em seu intenso amor fraternal, o chama de Jorge. Este, não aceitando a vida miserável na cidade, com dezessete anos, sai de casa e vai em busca de um emprego com a esperança de uma vida melhor. De fato, logo começa a trabalhar, constrói sua família, mas, por circunstância de estar de vivo – e de ser negro, provavelmente – morre baleado. A última personagem negra que o narrador nos apresenta, e não menos importante, é a Rosa, sua empregada de muito tempo. Na visão dele, a Rosa é uma mulher feliz, que ri à toa, apesar de ser gorda, preta e desdentada. Acontece que essa mesma Rosa é a Rosi, a irmã mais nova, aquela única que iria embarcar com os pais, se não fosse o empenho da pequena Janéti em reunir toda a família.
            Os quatro negros – Janéti, Seu Sinhô, Jorge e Rosi - são infelizes e de vez em quando ficam felizes, como todo mundo (FISCHER, 2005, p 107). Isso, porque eles, cada um a sua maneira, transformam as adversidades da vida em motivação e esperança, seja com amor inexplicável, seja alcançando sabedoria, seja batalhando pelo sustento, seja rindo de tudo.
            Encerrando o resumo do livro, passo, agora, a comentar esta personagem que tanto encanta o narrador e, dependendo, o leitor. Escolhi Janéti não apenas por ser a figura principal da história, mas porque não poderia escolher outra. E, antes de tudo, faço referência às atribuições do próprio narrador, que, em sua visão, constrói essa mulher a partir do seu simples, mas inexplicável amor: mulher pobre, negra, gaúcha, morando lá naquele mundo (p.17); persistente, abnegada, amorosa, agregadora (p. 41); verdadeira mãe que não tem dezoito anos ainda (p. 95); a Janéti que sabe que a vida é estranha mas irrecusável (p.95); que queria todo mundo junto (p.97); que tem seu jeito de ser positivo e acolhedor, preciso e duro (p. 99).
Janeti, desde que foi largada na casa de uma “tia velha”, é determinada. Por mais de uma vez, os pais tentaram abandoná-la, mas ela insistia em voltar para casa. Então, desistiram da adoção, até porque, a guria já estava “crescida” mesmo e poderia ajudar no serviço da casa. Logo, tiveram mais filhos e, mesmo sendo todos dados para alguma família da vizinhança, Janéti dava nome a todos e amava cada um com aquele amor que a gente já conhece. Janete, era para ser. Mas, por escolha do pai semi-analfabeto, Janéti. Por escolha do autor, porque o nome traz informações prévias – pobre, interiorana, negra e rejeitada pelos pais. Apesar de tudo, a pequena Janéti abraça essa família como se os seus braçinhos pudessem alcançar a todos de uma só vez.
            No meio da narrativa, encontra-se Janéti já adulta, vencedora sobre as adversidades que encontrou, trabalhando, sustentando suas duas filhas e, ainda, seus pais. É nesse tempo da vida dessa mulher que o narrador a encontra em uma feira do livro, onde toma conhecimento dessa incrível história de amor e superação.
            E, para finalizar, cito o trecho da obra que Fischer escreve:
A vida é maior que a morte; a vida é uma doença letal e transmissível; a vida é essa maravilha irrecusável; a vida é a Janéti abrindo o coração para acolher mais gente ainda, porque sabe, sem palavras, que amor é simples mais, sempre cresce, não entra em conta de divisão, para quem ama tão do fundo de si. (FISCHER, 2005, p.85)

Referências bibliográficas

FISCHER, Luis Augusto. Quatro negros. Porto Alegre: L&PM, 2005.

SANTOS. Elaine dos. “Eles são gaúchos, negros e pobres: Quatro negros”. IN: Revista Urutágua. Nº 18. Paraná: 2009.

SANTOS, Elaine dos. “Literatura e sociedade: rompendo paradigmas – a resistência da mulher negra em uma sociedade branca, urbana e machista”. IN: Revista terra roxa e outras terras – Revista de Estudos Literários. Vol. 17-B. Londrina: 2009.


* Acadêmica do curso de Licenciatura em Letras Português e Literaturas da Língua Portuguesa da Universidade Federal de Santa Maria.